Incentivar que o filho supere seus limites ou protegê-lo de dificuldades? Especialistas e pais comentam os dilemas de criar uma criança com deficiência.
Na cinebiografia do cantor e pianista Ray Charles, lançada em 2004, uma das cenas mais comoventes tem início com o músico, ainda menino, tropeçando em uma cadeira e se estatelando no chão de casa. Ele havia perdido a visão pouco antes desse episódio e, assustado, grita por socorro. Da cozinha, a mãe assiste ao incidente e tem um impulso de ajudá-lo, mas refreia-se. Decide observá-lo, em silêncio, para saber se o garoto consegue lidar com sua nova condição.
O dilema que a atriz Sharon Warren representa na tela é o mesmo que pais e mães de crianças e adolescentes com alguma deficiência sensorial ou motora enfrentam em seu dia a dia: incentivar que o filho supere seus limites a fim de crescer em relativa igualdade com seus pares ou poupá-lo de frustrações e agir de forma a atenuar os obstáculos que, devido à deficiência, são mais difíceis para ele do que para os demais.
Doralice da Silva Nascimento, 45, mãe de Anderson, 25, Alexandre, 23, e André, 19, que nasceram cegos, passou por essas duas situações: superprotegeu o primogênito por não aceitar o problema de início, mas mudou de atitude quando os outros filhos nasceram, também sem enxergar. “Quando soube que o Alexandre era cego, procurei ajuda em uma escola especializada. Passei a aceitar a condição deles e a entender que precisavam aprender a se virar sozinhos, pois eu não poderia ajudá-los para sempre”, diz.
Nascidos no interior de São Paulo, os três foram criados com autorização para subir em árvores, brincar de pega-pega e jogar bola. “Minha mãe embrulhava a bola em um saco plástico para que pudéssemos saber onde ela estava”, conta Alexandre. Aprenderam até a andar de bicicleta e a cavalo.
Quando os três filhos saíram sozinhos pela primeira vez, Doralice os seguiu sem que eles soubessem. “Foi terrível deixá-los andar sozinhos. Várias vezes eu os via em situação de perigo e tinha vontade de gritar para eles tomarem cuidado, mas não podia reagir para não atrapalhá-los”, recorda-se. Hoje, os irmãos usam transporte público, viajam sozinhos, fazem faculdade de gestão de RH e são medalhistas em atletismo: “Graças à minha mãe, somos totalmente independentes. Fazemos qualquer coisa, como qualquer pessoa”, diz Alexandre.
Equilíbrio
Segundo a psicóloga e psicanalista Ana Cristina Marzolla, professora da PUC-SP, a maneira como os pais encaram a condição do filho depende de uma série de fatores, como o tipo e o grau de limitação da criança, a estrutura familiar, a relação do casal e a personalidade de cada um deles. “E esse comportamento não é estanque, ele muda com o tempo.”
Christian Arndt, 27 anos, nasceu com a doença rara Tetra-amelia. Doença que acarreta a ausência dos quatro membros.
O psicólogo Roberto Benedito de Paiva e Silva, do Departamento de Desenvolvimento Humano e Reabilitação da Unicamp, acredita que os pais devem ter uma visão real das limitações. “A criança precisa de estimulação e de recursos que facilitem sua vida, mas tem que aprender a conviver com o mundo com naturalidade.”
Para Ana Cristina Marzolla, a superproteção faz com que a criança tenha uma autoimagem de fragilidade, impede-a de conhecer seus recursos e cria dificuldade para lidar com a frustração. “Isso ocorre também com filhos não deficientes, mas uma criança com deficiência, dependendo do grau de superproteção, pode não desenvolver toda a sua capacidade cognitiva”, alerta.
Negação
Uma espécie de avesso da superproteção, a negação é outra maneira que os pais encontram para lidar com o diagnóstico de deficiência. “Alguns podem fazer de conta que está tudo normal e, com isso, não conseguem atender às necessidades específicas da criança”, afirma a psicóloga da PUC-SP.
O adolescente Gabriel do Rosário Mendes, 14, foi educado para ser como as outras crianças. Até os quatro anos ele não falava nem sentava. Sua mãe, a recepcionista Ágda do Rosário Mendes, 40, deixou o trabalho de lado para levá-lo a sessões de terapia que tomavam praticamente o dia inteiro.
No fim da tarde, ela não abria mão, no entanto, de levá-lo com as irmãs mais velhas à pracinha próxima de casa. “Eu o colocava no balanço, no escorregador. Fazia de tudo para ele acompanhar e não se sentir diferente”, recorda-se a mãe. Até na aula de judô Ágda o matriculou. “A fisioterapeuta não queria porque tinha medo de que ele caísse e se machucasse, mas deixei porque era uma alegria para ele”, diz.
O único passeio que a mãe desautoriza é ir ao parque de diversões. O medo que ela sente e que impede o menino de ir a esses locais vem da época em que Gabriel sofria convulsões ,oito anos atrás, o que teria levado o neurologista a proibir esse tipo de brincadeira. “Ele me cobra até hoje”, diz a mãe.
Fonte: Folha de S. Paulo
Referência: Bengala Legal
Cena mais comovente do filme em que após ter perdido a visão, ainda criança, Ray Charles tropeça em uma cadeira e se estatela no chão de sua casa. Veja a forma como a mãe de Ray agiu diante da deficiência de seu filho
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