sábado, 21 de abril de 2012

As células-tronco e a ilusão chinesa


CRISTIANE SEGATTO  Repórter especial, faz parte da equipe de ÉPOCA desde o lançamento da revista, em 1998. Escreve sobre medicina há 15 anos e ganhou mais de 10 prêmios nacionais de jornalismo. Para falar com ela, o e-mail de contato é cristianes@edglobo. (Foto: ÉPOCA)


Uma investigação revela que nem o governo consegue acabar com esse engodo. Como os brasileiros podem se proteger

CRISTIANE SEGATTO
É possível enxergar a realidade de várias formas, mas uma doença grave na família quase sempre canaliza os olhares para um foco único: o da esperança. A confiança em uma coisa boa é apenas uma das definições de esperança, segundo o Dicionário Houaiss. Há uma outra. Ela quase sempre escapa pela janela quando a moléstia avança pela porta: esperança é algo que não passa de uma ilusão.

Nos últimos anos, famílias de brasileiros que enfrentam graves doenças foram atraídos pelas promessas de cura feitas por empresas instaladas na China. As células-tronco chinesas viraram a panaceia do novo milênio. Em apenas um site da internet, é possível receber a oferta de soluções para problemas que nem as melhores cabeças do mundo, somadas, foram capazes de encontrar.
Autismo, ataxia, esclerose lateral amiotrófica (a doença do famoso físico britânico Stephen Hawking), paralisia cerebral, derrame, lesão medular, distrofia muscular, epilepsia, Parkinson, doença de Huntington. A lista é ainda maior.
Por milhares de dólares, as empresas oferecem injeções de células-tronco que ninguém sabe de onde vêm. Os cientistas mais respeitados do mundo nessa área não sabem se os chineses usam células-tronco embrionárias (aquelas que tem o potencial de gerar qualquer tecido do organismo) ou células de tecidos específicos extraídas de fetos abortados. Ninguém sabe o que os chineses fazem porque eles simplesmente não publicam seus “achados” em revistas científicas.
O que se sabe é que eles cobram caro para submeter os pacientes a experiências que, além de não curar, podem piorar a condição dos doentes. As empresas atraem novos clientes por meio de sites que exibem depoimentos de pessoas que receberam as injeções e dizem ter observado melhorias.
Pode ser efeito placebo. Pode ser um ganho momentâneo provocado por remédios ou fisioterapia. Pode ser qualquer coisa. Inclusive, não ser verdade. É impossível afirmar que essas injeções sejam seguras e eficazes sem acompanhar os pacientes por um longo período, com método científico, e publicar os achados (satisfatórios e insatisfatórios) em revistas científicas. É assim que a ciência caminha. Enquanto isso não é feito, o que os chineses estão fazendo tem nome: charlatanismo.
É compreensível que os brasileiros se comovam com a história de crianças e adultos que enxergam nas promessas chinesas uma única chance. Brasileiro, felizmente, tem coração grande. Mas o altruísmo não pode embotar o conhecimento e a capacidade de reflexão.
Campanhas são feitas em todo o Brasil por famílias que tentam arrecadar dinheiro para a viagem e o falso tratamento. Digo falso porque nas condições em que são oferecidas essas experiências jamais poderiam ser chamadas de tratamento. Carros são doados, municípios inteiros se mobilizam, comunicadores divulgam os apelos.
Melhor seria se a energia e o dinheiro reunidos fossem aplicados na assistência a esses pacientes aqui mesmo no Brasil. Com os recursos terapêuticos que já existem e que foram submetidos ao crivo da ciência. Eles não curam, eles melhoram a qualidade de vida do paciente de forma limitada...Tudo isso é verdade mas, infelizmente, é o que a ciência e a medicina podem oferecer no momento.  

  • “Ir atrás desses tratamentos na China é uma temeridade”, diz Stevens Rehen, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do Laboratório Nacional de Células-Tronco (Lance). “Não só pelo dinheiro desperdiçado, mas pelo risco envolvido. É difícil transmitir isso a uma família desesperada, mas o fato é que os doentes podem piorar em vez de melhorar.”
Para ficar em apenas dois exemplos, essas experiências podem provocar câncer e doenças autoimunes. Se as células-tronco embrionárias têm o potencial de se transformar em qualquer tecido, elas podem dar origem a um tumor em vez de corrigir o defeito que se pretende corrigir.
As injeções também podem confundir o sistema imune. “Temos uma biblioteca de anticorpos. A injeção de células estranhas pode fazer o organismo atacar aquelas novas células e também as do próprio paciente”, diz Rehen.
Na semana passada, a revista científica Naturepublicou uma investigação sobre esse triste turismo médico na China. Segundo a publicação, o Ministério da Saúde chinês classificou essas experiências como altamente arriscadas e determinou uma auditoria nas empresas antes que elas pudessem oferecer esses serviços. Nenhuma delas recebeu aprovação das autoridades sanitárias da China para funcionar.
A medida não teve nenhum efeito prático.
“Em 2009, havia cerca de cem empresas oferecendo experiências com células-tronco na China”, disse à Nature Doug Sipp, pesquisador do Riken Center for Developmental Biology, em Kobe, no Japão. “Mesmo depois da reforma proposta pelo Ministério da Saúde, essa indústria continua crescendo.”
Em janeiro, o governo chinês anunciou um pacote para moralizar o setor. Qualquer organização que trabalhe com células-tronco deve registrar as pesquisas em andamento e possíveis atividades clínicas, declarar de onde vêm as células-tronco e quais são seus procedimentos em relação à ética em pesquisa.
O Ministério da Saúde chinês pediu às autoridades locais que interrompam qualquer uso clínico de células-tronco que não tenham recebido aprovação prévia. E lançou uma moratória nacional para barrar qualquer novo estudo clínico com células-tronco. Determinou também que não seja cobrado nenhum valor dos pacientes inscritos nessas experiências.
Cobrar milhares de dólares para submeter um paciente a uma experiência, sem nenhuma garantia de segurança e eficácia, é uma das mais sórdidas atividades econômicas desses novos tempos. É muito difícil fazer uma família perceber isso no momento em que se apega a toda e qualquer esperança. Alertar é a obrigação de quem tem distanciamento suficiente para enxergar a cena completa.
Como bem lembra o editorial da Nature, nas décadas de 30 e 40 do século passado, os médicos se convenceram de que o acesso à lobotomia (intervenção cirúrgica radical no cérebro para tratar esquizofrenia e outros males) era tão ugente que não seria possível aguardar o processo de comprovação de segurança e eficácia. Os cérebros de milhares de pacientes foram mutilados antes que os críticos conseguissem reunir argumentos e evidências suficientes para banir o uso da lobotomia.
É grande a semelhança com o que acontece hoje na China.
Infelizmente, a ciência não avança na velocidade esperada pela sociedade. Mas cautela é fundamental. Nesta semana, o Brasil deu mais um passo ao anunciar a liberação de R$ 15 milhões para estimular as pesquisas com células-tronco em oito centros de tecnologia celular.
Todo dinheiro é bem-vindo, mas é preciso ir além. Não é de hoje que os pesquisadores lutam contra a burocracia da Anvisa para conseguir importar reagentes e material biológico. As células não chegam ou chegam mortas aos laboratórios. São desperdiçados tempo, energia e dinheiro.
Os centros também precisam de novas regras para conseguir contratar pessoal com rapidez e com salários atraentes. No laboratório de Rehen, os profissionais são contratados por meio de bolsas. É difícil, quase impossível, reter um bom pesquisador com salários entre R$ 2 mil e R$ 2,5 mil.
“Acabei de perder um ótimo profissional. Vai trabalhar na L’Oréal, em Paris”, diz Rehen.
Sorte do garoto. Azar o nosso.

E você? Conhece alguém que enfrenta uma doença grave ou se submeteu a uma experiência? Conte pra gente. Queremos ouvir sua opinião.
(Cristiane Segatto escreve às sextas-feiras

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